A NOITE DEVORA SEUS FILHOS

de Daniel Veronese

PRÓLOGO: nosso decálogo de infelicidade

Aquela noite, minha mãe, tremendo de vergonha, em cima da mesa de um bar e diante de dezenas de desconhecidos, recitou nosso decálogo de infelicidade.

E eu senti vergonha também.

Cabe explicar que sou herdeira involuntária de uma forma de ver o mundo. Desde pequena, minha mãe me ensinou a notar detalhes que para o olhar comum não teriam a menor importância. Para isso, saíamos para fazer grandes passeios, para percorrer a cidade, ver as pessoas. Posso dizer que passei minha infância me apegando com força a tudo; recebendo emoções alheias como próprias. Costumava me apegar a cada coisa que via, a cada mão que se aproximava das minhas pequenas mãozinhas.

E foi em uma dessas caminhadas com minha mãe, já cansadas de andar, que entramos num bar. Era quase noite. Era o bar do Sr. Orlando, me lembro o nome. Tem dias que não lembro. E é preciso que eu me lembre do nome pra poder me lembrar de outras coisas, tantas quanto seja possível, é melhor assim. Recordar pequenas coisas me faz lembrar a totalidade. A lembrança aparece como uma casualidade mas é o resultado de uma somatória. Por exemplo: o bar do Sr. Orlando era um bar agradável, antigo, cheio de gente, cheio de vida. Um senhor de jaqueta preta estava tomando seu oitavo copo de cerveja. Sabia pela quantidade de copos vazios que ele ia deixando no balcão.

Não nos aproximamos. Ele parecia não querer falar com ninguém. Não era muito jovem, este senhor. Não se podia dizer que era o dia mais importante da sua vida. Nem o mais feliz. Pediu seu nono copo de cerveja. Enquanto esperava, nos dirigiu o olhar. Eu não o reconheci. Piscou pra gente. Não sei se pra mim ou pra minha mãe. Não sorriu, isso não. Sério.

Minha mãe me deixou sozinha por um instante. E eu a vi ir para trás.

Ele falou comigo. “Se acabar rápido com minha cerveja vou te convidar pra dar uma volta. Já bebi quatro”. Eu: “oito e com essa serão nove”. Ele: “eu estava com sede. Não se afaste. Não gosto das pequenas. Não tenha medo. Já deixam você beber? Muitas já dormiram comigo. Fico bêbado até um momento que não lembro de nada. Nos divertimos. E sua mãe, onde foi?”...

E vejo o homem arregalar os olhos e a boca e olhar por cima de mim. Me viro e vejo o que ele estava vendo: minha mãe em cima da mesa do bar. Ela em cima da mesa. Inacreditável. Nunca a havia visto neste estado. O rosto transtornado. Parada diante de toda essa gente desconhecida. Diante do homem de jaqueta preta. Em cima da mesa, começou a contar com veemência uma história muito velha, muito velha, que muitos conhecerão.

Uma história terrível. Eu a memorizei, é claro, como memorizo tudo. No final da história, todo mundo chorou. Tirando o senhor de jaqueta preta, todos choraram.


I: Algo sobre os tempos e os desejos

A história era realmente uma história terrível: era sobre uma mulher que cuidava de sua mãe. Vivia com ela em sua casa porque a velhinha, inválida, não podia valer-se por seus próprios meios. E a fazia dormir com ela em sua própria cama, não só em seu próprio quarto, mas em sua própria cama. O terrível se deu quando uma noite a mulher, que era, na verdade, uma mulher jovem, com desejos de viver sua vida, chega ao quarto com um homem a tiracolo. O leva pra dentro sem pensar, sequer, que não havia outra cama no quarto, a não ser a que dividia com a mãe a cada noite. Sempre me enterneceu esse detalhe de amor e companheirismo entre as duas mulheres, tão oposto ao triste desenlace que houve depois. E falo isso porque cheguei a conhecer esta casa e a estas duas mulheres. Minha mãe me levou até lá como me levava a todos os lados.

Bem. O homem vê a cadeira de rodas. Logo vê a velha na cama e compreende em seguida que deverá carregá-la e colocá-la na cadeira de rodas, se quiser realmente se deitar com a filha. Repito: não havia outro móvel disponível na casa. Ele compreende também que a velha não sairia sozinha para dar um passeio. Não, não podia. Não sabe como agir. Então começa a retardar o momento amoroso para não ter que passar por uma situação tão incômoda. Pede algo para beber, tomam algo com álcool, fumam, conversam, escutam rádio, dançam diante dos olhos silenciosos da anciã. Porém, indefectivelmente, o momento chegou. Chegou porque tinha que chegar. Foi para isso que mulher havia levado esse homem. Para dormir com ele. Ela pede, então, ao homem, que tire sua mãe da cama. O homem, então, o que faz? tira a senhora da cama. A levanta e deposita suavemente na cadeira de rodas, como se se tratasse de uma boneca de porcelana. A cobre com uma manta até o pescoço. Olha para a cama e vê que a mulher havia se despido e deitado no mesmo lugar em que a mãe estava há instantes. Olha para a velha. A velha está olhando para ele. Algo passa por sua cabeça sobre os tempos e os desejos. O que ele faz, então? Acaricia o rosto da velha senhora, lhe beija a testa, coloca seu chapéu e vai embora.

O homem vai para sua casa.

Isso é o que ele faz, ao invés de ficar com a mulher. Algo havia se rompido entre eles.

Essa noite a filha teve um pensamento sangrento: desejou ferventemente que sua mãe não estivesse viva. Odiou sua mãe por estar viva. Culpou a mãe por não poder ter uma noite de amor.

Esta noite as mulheres dormiram separadas. Pela primeira vez em muitos anos.

Em algum momento da vida os filhos odeiam seus pais.

Ela odiou sua mãe por este homem.


II: às vezes observamos pessoas que observam um rio que nós não vemos

É que não era qualquer homem. O homem era realmente especial. Sua vida era especial.

Para começar, era um homem com algumas peculiaridades: costumava sair amordaçado pela rua. Verão e inverno. Ia vestido corretamente, mas com um grande pedaço de pano preto atravessando o rosto. Me cruzei com ele também, um dia. Me impressionou muito conhecê-lo. Ele não tinha o aspecto de alguém em quem se confia, por exemplo, uma criança.

Você cuidaria da... enquanto eu vou ao...?

Quase não se via sua cara. E tinha um gestual desengonçado por causa dessa vendagem. Quase nunca permanecia sereno. Estava sempre nervoso e tenso.

O homem não suportou a situação. Tirou a velha da cama e se foi. E não é que se tratava de um homem honesto. De maneira alguma. Não é disso que estou falando. Este homem havia cometido um assassinato. Terrível sua história também. Ele assassinou um cego. Por isso perdeu a tranqüilidade e a doçira. Se via o assassinato em seu andar. Na forma de conduzir-se. Às vezes observamos pessoas que observam um rio que nós não vemos. Rio que por sua vez reflete uma parte da paisagem impossível de ver desde outra posição. E descobrimos o rio na atenção destes rostos, a paisagem em seu ensimesmamento.

Chegaram a incriminá-lo e prendê-lo. E não eram momentos bons para estar preso. Terrível, a prisão. O que aconteceu lá dentro.

O assassinato que cometeu, é preciso dizer, na verdade foi por culpa de sua esposa: uma mulher que quando jovem havia sido muito bela, mas que já não o era mais. E tinha ainda um hábito muito desagradável. Não podia deixar de enfiar as mãos na boca de quem passava. Sim. Amava esfregar seus dedos pelo paladar dos outros, apertar suas línguas, percorrer dentes e obturações.

Se interessava pelos gritos humanos. As doenças da boca. A atmosfera bucal em geral. Os movimentos da língua com a boca fechada. Ah, isso a obcecava até o cúmulo: o que acontecia lá dentro com a língua quando a boca se fechava. E seu esposo odiava este hábito da mulher. Alguns dizem que vivia amordaçado por causa disso. Não sei.

O que sei é que um fotógrafo cego, desempregado por causa de sua cegueira, que vivia praticamente na rua, em frente à casa da mulher, ofereceu a ela retratar estas experiências. Era muito engraçado este duo. Sim.

O fotógrafo cego havia se convertido em um especialista, como ele dizia, em “retratar o que não se vê”. O que não se pode ver e o que não se deve ver. Usava sempre para suas fotos uma luz de flash intermitente. Trabalhou com esta mulher durante um tempo na violência da língua e dos dentes. Pontes, canais, dentes de vidro, coberturas de platina. Tudo isso.

Bem, por causa deste fotógrafo, o esposo da mulher – o amordaçado – terminou de perder a alegria. Eis o porquê. A capacidade do cego de retratar o oculto na cavidade da boca deslumbrou a mulher, que não hesitou em deixar-se retratar de corpo inteiro. E terminou assassinado.

O amordaçado chegou a adverti-lo um dia: “Sobre uma grande tela celeste avança um barco que cairá no abismo. Neste barco estará você”. Depois deste comentário nunca mais se viu o cego na cidade. Ninguém se surpreendeu quando o encontraram morto no meio do caminho. Era comum este tipo de acontecimento. Um carro havia passado por cima dele. Pelo menos uma das rodas do carro havia passado por cima.

A verdade é que ninguém sentiu falta do fotógrafo cego. Talvez a mulher da casa em frente, talvez. Não sei realmente. Não sei. Já não há como comprovar.

Dizem que o defunto criava seu próprio mundo. Pela manhã, não lhe bastava abrir os olhos para saber que um novo dia começava, como fazemos a maioria dos mortais. Ele se rodeava imaginariamente de personagens com quem conversava. Falava com gente inventada. Com deuses. E falava para constatar que estava vivo, que o mundo lá fora seguia existindo. Que não estava morto. Talvez nunca tenha entendido na realidade, como eram os vínculos entre a gente vidente. Talvez ninguém o tenha ensinado. Se visse o que realmente lhe rodeava talvez tudo teria sido diferente para ele. Não sei. Quem sabe?

O cego tinha muitos filhos. E nunca soube. Morreu sem saber disso. Vários. Não com a mulher do amordaçado. Esta mulher não teve filhos. Os filhos do fotógrafo também não se viam. Muitos nem se conheciam. Nunca ninguém os reuniu e disse: “vocês, crianças, são filhos de mães distintas, mas de um único pai. Um pai cego e já morto”.

Mas a morte preocupou a um deles, um de seus tantos filhos. Sua mãe havia lhe contado sobre o cego. Eu o conheci, pobrezinho. Falava um idioma estranho. Era poeta. Ou queria ser. Poemas estrangeiros. Irreais como um lugar estrangeiro. Dizia em um de seus poemas que não alçava as mãos ao céu, porque se as alçava escutavas negras sinfonias. Era muito particular como criança também. Vivia com sua mãe, sim. Sua mãe, tenho que dizer, só decidiu contar quem era seu pai após suas insistentes perguntas. A verdadeira história é que sua mãe foi quem declarou seu amor cego ao cego, de noite, quando as diferenças estavam atenuadas. E logo se arrependeu. Mas já era tarde. O bebê começou a crescer em seu ventre. O cego nunca se inteirou já que ninguém falava com ele. Já disse.


III: ...E miava para passar inadvertido. Fazer-se animal. Ser ninguém.

Essa mãe e um dos filhos do cego, juntos, sim. Ela costumava olhar perdidamente o vazio. Ela costumava perder o olhar. E não era saudades do cego. Não pensem isso. Só o vira uma vez e de noite, já disse, a aurora com os primeiros raios de sol, já havia tomado a decisão de abandoná-lo. Era...como se diz...sonhadora. Apreciava o que era quieto. O valor da espera. E o filho adquiriu essa capacidade da mãe. Seu olhar também era sonhador.

Ambos costumavam sonhar muito. A mãe, quando ainda era viva – digo isso porque soube que já morreu – costumava sonhar, cada noite, com pessoas que batiam em sua porta. No meio da noite se levantava da cama mas quando ia atender...ninguém na terrível e desolada escuridão. E voltava tremendo de frio e temor ao leito, para abraçar quem tinha ao seu lado. “Não se vá nunca”, implorava a seu filho cada noite. Então, nesse momento exato, o sonho do filho se lançava como uma roda fatal e demente. E tomava a forma de um passeio melancólico. Abrir armários com pequenas garrafas de vidro com a cara de gente conhecida que já não estava. Sonhava sempre que alguém o despia e lhe punha outra roupa e como tinha frio, lhe punha uns sapatos frouxos de papel nos pés. Subia-no numa bicicleta para levá-lo e dizia que era um usurpador e que chora se quiser, pode chorar, que nem todo mundo tem vontade de chorar, que só os fracos e os usurpadores choram.

Ao despertar, cada manhã, a mãe sempre comentava sobre os golpes noturnos na porta e o filho relatava este sonho, todo dia antes do café. Vamos, dizia a mãe, seja mais claro de uma vez, o sonho de todo filho é que morra seu pai. A herança como uma transmissão de ritos, costumes. Seu pai, ao contrário, te nega com sua vida e sua ausência, a possibilidade de você se sentir herdeiro. Ele é o verdadeiro usurpador. Então o filho se ajoelhava e tomava as pernas da mãe como um gato, pedindo que ela lhe acariciasse. E miava para passar inadvertido. Fazer-se animal. Ser ninguém. Assim quietos quase todo o dia. E já ao entardecer, a sonolência e súbito, as batidas na porta, retrocedendo, escuros.

Esta mulher era conhecida como a mulher da farmácia. Nunca soube porquê. Minha mãe sabia mas nunca me disse. O que sei é que quando jovem, não havia sido muito bonita. O amor havia sido negado quase sempre, desde cedo.


IV: Intuo que somos dois tristes náufragos

Teve, na verdade, um único e verdadeiro amor que gostava de recordar. Um artista. Um jovem pianista. Mais jovem que ela. Mas isso aconteceu quando já era bem mais velha, quando parecia que já desaparecia toda certeza de felicidade.

Era um pianista que tocava em um velho café situado numa rua paralela ao bar do Sr. Orlando. Esta mulher esteve observando o pianista durante meses sem atrever-se sequer a entrar no local.

Mas uma noite entra, havia bebido algo demais, não sei, e pede ao garçom que leve ao pianista uma mensagem, um papelzinho que havia escrito. E o faz levar também uma bebida branca por sua parte. Vodka. A mesma que estava tomando. O papel dizia: “Pianista: intuo que somos dois tristes náufragos. Olhe para mim. Por você me afogo, longe, no copo da lembrança. Resgata-me.” O pianista a olhou e ela bebeu de um trago seu grande copo de vodka.

Era muito provável que o pianista não fosse responder a cortesia da mensagem. Assim ela intuiu. Então, prevenida dessa circunstância, ela se aproximou do instrumento negro e lustroso e sussurrou ao ouvido do músico: “Quando era criança tive muito medo de um filme que vi na televisão, sabia? Um sinistro personagem vestido com um traje de escamas verdes entrava na sala de máquinas de um navio e assassinava os tripulantes com seus dedos cheios de magnetismo e crueldade viril. Quando cresci voltei a ver o filme e vi que o personagem que me horrorizou a vida inteira era de TARCÍSIO MEIRA. Um ator que admiro. E na hora, me acalmei. Agora, se você não me encarar, vou ter que carregar um peso similar no meu coração durante o resto da minha vida. Não queria ter que passar por isso outra vez. Já não sou uma criança, já não tenho medo.” E o beijou na boca e lhe disse: “Te chamarei de Tarcísio.” E voltou triunfalmente para sua mesa.

O pianista impávido. “Tarcísio”, na verdade, nunca havia beijado mulheres, apenas homens. Alguém depois a advertiu sabiamente ao pé do ouvido: “Dizem que ele só sonha com homens”. Não importa, dizem que respondeu, intuo que já não serei completamente feliz. E eu gosto dos homens como gosto de...todas as pessoas. E assim, a declaração foi lançada sobre o piano.

Mas contra tudo o que se supunha, o pianista solitário e tenaz, decidiu aceitar o convite para emancipar sua própria pena. Quem não a tem. Ele, por sua vez, havia perdido um amor recentemente. Um ator. Um amor impossível. Havia se apaixonado por um homem de teatro. Terrível, a situação.


V: Linguagem dolorosa e misteriosa a do amor.

Imaginem a seguinte cena em um belo dia de outono na rua, por essa mesma avenida, nosso pianista, Tarcísio (vou chamá-lo assim, já que ignoro completamente seu nome) bem, Tarcísio caminhando apressado. Dando-se voltas a cada momento, dizendo para si: “Esta vez não é fruto de minha imaginação. Há um homem atrás de mim. Está me seguindo. Já não tenho dúvidas.” Decide então, depois de vários quarteirões de suposta perseguição, frear e encarar o outro, que na realidade vinha distraído, passeando pela rua, desfrutando a tarde fresca. Tarcísio o repreende: “Ouça. Você. Já me dei conta de que você está me seguindo. Quero saber por quê.”

Minha mãe gostava de dizer, a respeito de Tarcísio: “As pessoas se precipitam por qualquer coisa que lhes permita sair do passo apenas para afastar-se do perigo de querer e ser querido.”

O equívoco absurdo como uma forma de fabricar uma realidade própria. A necessidade de se fazer passar por outro e de fazer crer que sente como se fosse outra pessoa. Atuar como outro...Para quê? Para quê? Para terminar na triste história de sempre. Linguagem dolorosa e misteriosa a do amor.

Este ator, o que supostamente estava seguindo a Tarcísio, era muito conhecido no meio teatral por seus tons cálidos e serenos. Vivia num apartamento muito pequeno, pequeno já para uma pessoa, num estranho prédio do centro da cidade. Nosso pianista Tarcísio lembrou, na verdade depois – não durante este encontro na rua – que já o conhecia. Havia visto trabalhar uns anos atrás em uma obra de um autor estrangeiro.

Sempre diziam desse ator “é muito engraçado”. E minha mãe dizia que a grande oportunidade em sua carreira (a que todos têm uma única vez na vida) o roçou, passou por um triz mas não o pegou em cheio. Um alto diretor de um canal de televisão, escolhendo o próximo galã da novela, entre as centenas de fotografias que tinha pregadas na parede de seu escritório, fecha os olhos, dá umas voltas, para em frente a sua, marca com X e diz “Ele será o número um”. “Abre os olhos, a fotografia que você marcou é de um ator morto. Já falecido”, dizem que disse seu assistente, confundindo-o com um defunto. Ou talvez, como gostava de contar o ator, foi uma simples vingança, coisa plausível, já que circulavam histórias estranhas entre este assistente e os atores que pisavam no canal. De todas as formas, isso é que ele gostava de comentar, explicando que sua má sorte na profissão era, de alguma maneira, uma desajustada questão de requerimento de sexo, não de talento. Não lhe faltava trabalho também, ainda que em geral – dadas as circunstâncias sociais – havia começado a faltar para todos.

Isso sim: era famoso por seu caráter. E tinha, Tarcísio pôde constatar logo, certos ritos antes de dormir. Provava óculos, que colecionava insanamente, e enunciava em voz alta o que via com cada um. Não há que buscar nenhuma explicação lógica para isso. No princípio isso era apenas um método para poder dormir. Mas tendo nosso pianista como público noturno, começou a extrair de sua memória apaixonados textos de personagens que, em outra época, lhe haviam propiciado certa notoriedade. E fazia isso, obviamente, aparentando sempre uma certa fugacidade nos relatos, como se aparecessem em sua mente e não fossem o resultado de outros trabalhos. E o pianista, obviamente embelezado.

De todas as formas, esse casal não durou muito. Não havia muito espaço no apartamento. Aí foi quando o pianista se refugiou nos carinhos maternais de sua velha namorada.


VI: um cochilo compartido através da parede

O que durou no ator foi o costume de recitar em voz alta seus textos antes de dormir. E como as paredes do edifício não eram muito sólidas não era difícil ser escutado desde os outros apartamentos. Isso o permitiu manter uma amizade com uma vizinha por uma temporada. Lamentavelmente, por uma má coincidência de horários, nunca chegaram a se ver. O que acontecia era que, quando o ator se deitava logo de manhã, depois de longos ensaios noturnos, sua vizinha se levantava para ir trabalhar. Aproveitavam para falar através das paredes, uns poucos minutos, dez ou vinte, não mais que o tempo dele tirar a roupa e dela despertar e vestir-se, num cochilo compartido através da parede.

Esta vizinha de parede era uma empregada doméstica que vivia nos arredores da cidade mas durante a semana, para economizar dinheiro da passagem até sua casa, dormia nesse quarto, que alugava por uma pequena porcentagem de seu salário. Aos sábados, pela tarde, voltava ao seu barraco para ver o marido.

Mas ela já não amava o marido. Amava secretamente a seu cunhado. Uma manhã, a vizinha de quarto conta ao ator, sempre através da parede, que havia se interado, por casualidade, que seu cunhado viera atrás de seus passos até a cidade. E que havia decidido encontra-lo, abandonar seu trabalho e não voltar mais para sua casa. Por essas casualidades que a vida tem, o cunhado também veio viver na pensão. Sim, parece mentira mas era realmente um edifício singular. Habitado por gente que por alguma razão convergia ali e se amontoava como animais no matadouro. As pessoas passavam por situações inenarráveis. Que não se podem narrar. Mas realmente não se podia narrar.

Na cidade estavam realizando uma guerra – não saberia bem se chama-la assim – de proporções minúsculas e vergonhosas.

O governo realizava toques de recolher e aconselhava também baixar o consumo de eletricidade. Por causa disso, a companhia elétrica baixou a voltagem das lâmpadas do corredor comum e de cada quarto. Então a empregada doméstica e seu cunhado devem ter se cruzado centenas de vezes pelo edifício sem reconhecerem-se. Se saudavam na penumbra dos corredores como saúdam quem comparte a penosa vida de pobre, sem levantar a vista dos sapatos. Ambos se buscavam pelas ruas, nos ônibus, em lojas, mas não ali.

E o tempo passou. Muito. As paixões foram se acalmando. Ela sozinha sem trabalho teve que ir renunciando a comodidades básicas. Até que teve que voltar para o marido.


VII: provando os vestidos coloridos

Eu a conhecia muito. Fomos amigas de infância. Terminou se suicidando e gravando sua morte. “Para que sirva de exemplo meu sofrimento”, deixou dito. Foi uma pobre mulher. Não havia tido sorte desde criança. Sua mãe era amiga da minha mãe. Vinha de uma humilde família de estrangeiros que havia chegado ao país depois de muitas peripécias. Estiveram muitos anos no país mas nunca foram considerados cidadãos. Eu conheci a todos eles. O pai, a mãe, a ela e ao irmão. Seu irmão era retardado mental. Era mais velho que ela. E cuidavam dele com infinita ternura. Era imensamente terno ver essa cena familiar. E não tinham nada. Não podia acontecer mais desgraças com eles. Passaram por momentos que pouca gente suportaria. Não sabemos qual é o limite da desgraça, não se sabe. Eles sim, souberam. Uma noite, quando ela era criança se sentaram a mesa para o jantar. Haviam sentado o irmão retardado na mesa da sala. Minha mãe presenciou tudo, sim. Minha mãe costumava visita-los e me levava. Minha mãe estava lá essa noite. E ela gostava de manter certa distância, observando, lhe dava prazer. Sim, esse dia, fatalmente, minha mãe havia ido até lá de visita. E havia me levado. Ela gostava que eu os visse também. E compreendesse. O pai do jovem estava em casa. Lia. Ler antes de comer era um costume da casa. Até o retardado lia. Lia sentado ao lado de sua mãe e seu pai na mesa da sala. Minha amiga tinha como eu, uns 5 ou 6 anos, e era com quem eu brincava quando minha mãe me levava.


E essa noite, acho que estávamos brincando no quarto de cima, provando os vestidos coloridos de sua mãe, quando um homem alto com uma jaqueta preta seguido de outros cinco ou seis entraram na casa. Sem bater. Jogaram a porta no chão, literalmente. De cima se escutava tudo. Vinham para expulsa-los. Ou roubá-los? Ou vinham pela simples crueldade? Disse que eram tempos difíceis. Em algum momento alguém começou a chutar as coisas. O homem alto parecia não estar de acordo com isso, já que era o único que não gritava, mas também não fazia nada para deter aos outros. Minha amiga e eu nos debruçamos na escada. Lembro de minha mãe contra a parede, olhando a escada, me procurando com os olhos. Depois, olhando para um dos homens, um do grupo, que estava batendo com seu cassetete na mesa servida. E logo, num escritório cheio de livros. Depois a televisão. E depois o menino retardado. Nessa ordem. Vi como o menino se retorcia no chão, sem entender o que era aquilo que caía brutalmente sobre suas costas, sua cabeça, não entendia o porquê. Isso foi o começo de tudo. É como uma lembrança concreta que podia ter passado monstruosa e lenta pela mente de minha mãe, mas ficou ali, estancada. Nunca pude superar isso, nunca pude sair dessa situação, a do homem que não gritava que sobe as escadas, que entra onde estávamos eu e minha amiga e diz em voz alta para que os de baixo possam escutar: a mais bonita do mundo, diz, sim, beijando a mim ou a minha amiga, não me lembro bem a quem, mas sei que disse isso, a mais bonita do mundo, não sei quem ele beijou porque fechei os olhos. E sinto que vem. Seu corpo se movia inteiro como se não tivesse joelhos ou cotovelos. Como se não fizesse movimentos abaixo dos braços. Ou com o pescoço. Os que batiam sim, eram mais harmoniosos em seus movimentos. Mais movediços. Tirou a jaqueta preta quase sem mexer-se. Me dei conta de que ele estava nervoso. Isto está dentro de minha amiga mas está dentro de mim também. E quem dera que se apagasse. Ainda hoje o coração me assalta o peito, a garganta. Perguntou a minha idade. Ele, cerca de quarenta. Riu sem vontade, beijou a mão dela, no dorso, depois na palma. Eu não sabia o que estava acontecendo. Queria saber o que ia acontecer comigo e com minha amiga, que continuava com os olhos fechados. Repito: não eram tempos normais. Nas ruas, era normal ver incêndios, explosões, cortes de luz. Terrível. Uma vez houve uma explosão tão violenta que fez com que as pessoas tardassem horas para chegar nos colégios com seus filhos, todos os filhos da cidade assustados, todos com olhos chorosos, todos ao mesmo tempo. As crianças choravam porque sabiam que algo acontecia, mas não podiam entender bem o que era. Eu e minha amiga estávamos assim: algo fora do normal acontecia e nós intuíamos. Pegou minha mão. Ele me pegou pela mão. Nossas mãos não pareciam ter a mesma forma. Minha amiga abaixava a cabeça, tratava de esconde-la, de que desaparecesse entre suas pernas. As pessoas também começavam a caminhar de cabeça baixa nas ruas. A não cumprimentarem-se.


EPÍLOGO: que minhas palavras se percam na noite

Compreendi então essas histórias que minha mãe contava, que circulavam pelas ruas sussurradas aos ouvidos, nunca em voz alta. Histórias em que já nada assombrava. Tudo se misturava. Tudo valia para sobreviver. A fome começava a dividir, a criar inimigos. Era comum ver homens, em frente a crianças, brigando por um pedaço de pão. “Não há lugar para a solidariedade, não há lugar para a humanidade”, isso minha mãe sempre dizia, que desde encima da mesa daquele bar me fazia sinais, momento irrepetível, ponto de interseção entre sua própria dor e a minha, hoje eu sei, compreendo hoje, distante, alheia, como implorando, mostrando o homem de jaqueta preta que termina o nono copo de cerveja e que sai do bar batendo a porta, internando-se na noite. Minha mãe me faz sinais. A mim e a todos os que a olhavam, alheios, e esses sinais me servem para seguir hospedando a prevenção e o armazenamento das emoções; me disse que não as destrua apesar de tudo, me disse, é uma tarefa difícil mas necessária; que não há outra maneira, minha mãe me disse, me disse mas já não fala, eu leio seus lábios, os gestos, sua boca vermelha, sua cabeça vermelha, são seus gestos que falam desde cima dessa mesa de bar, que me dizem que já não há mais palavras que lhe alcancem e refresquem a esperança, inenarráveis eram suas palavras, disse, mas que eu sim preciso te-las, que as conserve ainda que me doa, ainda que me envergonhe, que nunca permita que se acabem, me disse, que minhas palavras se percam na noite.



FIM